sexta-feira, 28 de maio de 2010

Temos Escolha




No interessante livro "Homem lento", de J.M. Coetzee, há uma passagem que me marcou. É um confronto verbal entre o personagem principal do livro, um homem de mais de 60 anos que teve uma perna amputada depois de um acidente de bicicleta, e um garoto adolescente. Ambos estão no sombrio e decadente apartamento do velho, que resmunga:

-Eu fui ultrapassado pelo tempo. Este apartamento e tudo o que existe dentro dele foram ultrapassados pelo tempo.
O garoto pergunta se ele não gosta de coisas novas. O velho (que nem é tão velho) responde:
- Isso tudo um dia foi novo. Tudo no mundo um dia foi novo. Até eu fui novo. Na hora em que nasci, eu era a coisa mais moderna da face da Terra.
Nada é tão moderno quanto nós ao nascermos. Sublinhei.
Prosseguindo o diálogo, o garoto então comenta, como quem não quer nada, que um dia foi visitar o avõ para mostrar como funcionava um computador. O avô era bem velho e também tinha sido ultrapassado pelo tempo. Hoje fazia compras pela internet, enviava emails, recebia fotos.
- E daí? - pergunta o mal-humorado sem perna.
- Daí que dá pra escolher.


Eis uma frase, uma verdade, um verso: dá pra escolher. Todo dia, ao levantar da cama, eu procuro me lembrar: dá pra escolher. Nem eu nem você estamos jogados ao léu, nas mãos do destino. Não temos controle sobre tudo, mas dá pra esclher entre ter amigos ou viver recluso, dá pra escolher entre privilegiar um amor ou ter vários casos superficiais, dá pra escolher entre participar ativamente de um projeto que alavanque nosso bem-estar ou ficar de fora apenas criticando, dá pra escolher entre se refugiar num lugar tranquilo ou aprender a lidar com o estresse urbano, dá pra escolher entre levar a vida com bom humor ou levar a vida na ponta da faca.
Tudo é uma escolha, inclusive ser velho ou ser jovem, e isso não se resolve apenas numa clínica de estética. Todas as nossas escolhas passam pelo estado de espírito. É ele que vai determinar se vamos viver uma vida mais simples ou mais complicada, mais solitária ou mais social, mais produtiva ou mais lerda.
Dá pra escolher entre ser carnívora ou vegetariana, entre fumar ou não, entre correr na praia ou ficar um pouco mais na cama, entre jogar paciência ou ler um livro, entre amores serenos ou amores turbulentos. Se a escolha será acertada, aí já é outro assunto, o futuro vai dizer. Pensando bem, acertos e erros nem estão em pauta aqui. O que importa é ter consciência de que ficar sentado esperando que a vida escolha por nós não é uma opção confortável como parece. Descansados da silva, vem o tempo e crau: nos ultrapassa.

(Martha Medeiros)

terça-feira, 25 de maio de 2010

Dona do Dom...


Dona do dom que Deus me deu
Sei que é ele a mim que me possui
E as pedras do que sou dilui
E eleva em nuvens de poeira
Mesmo que às vezes eu não queira
Me faz sempre ser o que sou e fui
Eu quero, quero, quero, quero ser sim
Esse serafim de procissão do interior
Com as asas de isopor
E as sandálias gastas como gestos de um pastor

Presa do dom que Deus me pôs
Sei que é ele a mim que me liberta
E sopra a vida quando as horas mortas
Homens e mulheres vêm sofrer de alegria
Gim, fumaça, dor, microfonia
E ainda me faz ser o que sem ele não seria
Eu quero, quero, quero, é claro que sim
Iluminar o escuro com meu bustiê carmim
Mesmo quando choro
E adivinho que é esse o meu fim
Plena do dom que Deus me deu
Sei que é ele a mim que me ausenta
E quando nada do que eu sou canta
E o silêncio cava grotas tão profundas
Pois mesmo aí na pedra ainda
Ele me faz ser o que em mim nunca se finda
Eu quero, quero, quero, quero ser sim
Essa ave frágil que avoa no sertão
O oco do bambu
Apito do acaso...

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Eu ...






"Não me prendo a nada que me defina.
Sou companhia, mas posso ser solidão;
Tranquilidade e inconstância;
Pedra e coração.
Sou abraços, sorrisos, ânimo, bom humor,
Sarcasmo, preguiça e sono.
Música alta e silêncio.
Serei o que você quiser, mas só quando eu quiser.
Não me limito, não sou cruel comigo!
Serei sempre apego pelo que vale a pena
E desapego pelo que não quer valer...
Suponho que me entender não é uma questão de inteligência
E sim de sentir, de entrar em contato.
Ou toca, ou não toca".


(Clarice Lispector)


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